Olho pela fresta do meu quarto. Abastadamente observo uma senhora a passear a sua rafeira castanha com pouco mais de duas dezenas de centímetros de altura. Todos os dias as observo a vaguear pelas mesmas ruas, pelos mesmos passeios, dando os mesmos passos, nas mesmas pedras da calçada, parecendo tudo não passar de um replay. A rafeira fareja sempre a segunda, já centenária, árvore, posterior ao semáforo no sentido Sé – Escola Mário Sacramento (do lado oposto á minha santa residência.)
Não me canso de as observar…
A sua silhueta já não me passa por despercebida. Veste um casaco verde azulado, mas verde, gasto por sinal, que lhe dá pelas canelas. O casaco possui dois bolsos: o bolso do lado esquerdo leva um lenço de algodão com uma pontinha de fora, no outro esconde-se um maço de tabaco “MARLBORO” cuja embalagem em nada está deformada nem amachucada (intacta, portanto) juntamente com um bonito isqueiro. Calçado leva uns chinelos antigos, também verdes azulados e umas meias grossas, para o caso do frio atacar.
Aquela soberana imagem não me sai da cabeça.
Aquela inconfundível face circular, volumosa semelhante a claras em castelo, com os seus 70 anos de experiência. Aquele rosto cansado, aquela pele descaída parecendo querer fugir-lhe da cara, aqueles olhos negros brilhantes, já auxiliados, que teimam em não querer ver. Os seus cabelos vão se soltando e vão sendo levados pelo vento. As suas pernas já vão dando sinais de fraqueza. O seu coração e a sua cabeça... esses ainda são jovens, talvez, até, mais jovens de que muitos da minha geração…!
Admiro a sua força, a sua coragem, a sua rotina…
As duas sempre passo a passo, sempre ao mesmo ritmo, sempre as mesmas companhias, sempre as mesmas perguntas, sempre as mesmas vistas, … Sempre a mesma vida!
Todos os dias o café é tomado, no já erudito “Café Liceu”, com a sua nora e por vezes com o seu filho. Sempre á mesma hora, sempre no mesmo local, sempre o mesmo café escaldado curto com meio pacote de açúcar, ficando a outra metade para a vez seguinte. Engraço com a sua simpatia, apesar da conversa não ser muita! O café é, impreterivelmente, tomado na esplanada, quer faça sol, quer faça chuva, pois seguindo do café, vem o charmoso cigarro.
Penso muitas vezes que um dia gostaria de ser famoso, ter muito dinheiro, realizar todos os meus desejos, ter tudo o que pretendo, …mas ao ver estes casos de vida tão simples e, ao mesmo tempo, tão felizes, pergunto-me se é bom querermos tudo... Existem tantos prazeres, por muito pequenos que sejam, por muito curtos que sejam, que sabem tão bem…!
Sejam felizes com aquilo que têm e não desejem mais que aquilo que merecem.
Quando for grande quero ser como aquela senhora!
Será que mereço?
Lá vai ela…