Estou aqui deitado desde que a Paula saiu. Não me mexo. Estou estático a olhar para a porta. De vez em quando, muito lentamente, as minhas pálpebras tocam-se e voltam a abrir. As minhas pernas chatearam-se comigo, já não me obedecem. A minha cabeça já não se levanta, nem sequer para beber água. A Paula, o Paulo e o João passam horas a olhar para mim. Acham que estou cada vez pior. Quando tenho dores, e, então, choro, dão-me uns cilindrozinhos brancos que me aliviam, mas fico muito mole. Diariamente tomo 2 ou 3, dependendo das dores. Já quase não tenho fome nem sede. Não consigo andar para lado nenhum. Estou tão inválido! Para me deslocar tem de ser um dos meus donos a transportar-me. De noite, não consigo dormir. Tento, mas dói-me tanto! Choro. A Paula e o Paulo ficam tristes porque não conseguem dormir também e por me verem assim. Eles já não sabem o que me hão de fazer. Hoje ouvi dizer que acham melhor acabar com o meu sofrimento, mas não conseguem. Afinal, são 18 anos! Eu não os julgo por quererem isto, afinal não querem que eu sofra mais. Eles não sabem como hão de fazer, nem se é a melhor decisão a tomar. O João pegou em mim e levou-me para o carro. Já não saio à rua à bastante tempo. Parámos em frente a um local que tem cães e gatos desenhados no vidro. Ele levou-me até lá e pousou-me numa maca metálica. Estava fria. A Paula, o Paulo e o João conversaram sobre mim com uma senhora de bata. Já não bebo água à dois dias. Já não como à outros tantos. Eles estão muito preocupados. A senhora de bata perguntou-lhes se estava na hora. Eles não conseguiram dizer que sim, mas abanaram a cabeça. A senhora de bata disse-lhes que era o melhor que faziam, porque eu já não como, já não bebo, não me conseguiram dar a medicação, já não tenho forças, nem para me queixar. Então decidiram que era a hora.
Foram 18 anos, não foram 2. Eu tenho perfeita noção que eles não o fariam se não achassem que era o melhor para mim. Agradeço-lhes por acabarem com o meu sofrimento. Ao tomarem esta decisão, só me mostram que gostam mesmo muito de mim. A senhora de bata fez-me um furinho com uma agulha, mas eu nem senti. Introduziu um líquido e eu comecei a adormecer. A minha última imagem foi triste para mim. Os meus donos estavam os 3 a chorar.
O melhor amigo do homem, o companheiro indispensável.
ResponderEliminarA comoção chega até aos olhos mais secos ao ler as tão descritivas palavras colocadas na boca de um sujeito não humano, uma personificação tão eloquente que a tristeza da Paula, do Paulo e do João chega a nós também, a mim.
Lamento a sua partida, não conhecendo a verdadeira dor, porém com medo dela.
Abraço Valentim.
Chiça
ResponderEliminarSei o que o Paulo, a Paula e o João sentem. Ou melhor, não, não sei. Cada dor é diferente, cada um pensa e sente à sua maneira. Mas sabes que mais? Ele tem razão, os seus donos, aqueles que fizeram tudo por ele nestes 18 anos voltaram a fazê-lo, uma última vez. Deram-lhe o melhor. E, apesar de custar, ele sabe que apenas escolheram o melhor para ele.
ResponderEliminarE acredita, com ele não foi a imagem triste que viu no último momento, mas sim todos os momentos passados ao lado dos donos, todos os óptimos momentos. É isso que eu tento pensar que eles levam consigo, tem de ser isso, só pode ser isso.
E connosco também são essas que ficarão, para sempre. Serão as boas memórias a permanecer.
(Comptine d'un autre été é das minhas favoritas.)
Um beijinho enorme, Valentim.